Sonia Andrade
por Marcella Lista, 2022
O trabalho de Sonia Andrade é ainda hoje amplamente desconhecido. Os limites da infraestrutura institucional no Brasil e as correspondentes demandas que a artista impôs com relação à formulação e ao tratamento de sua obra fora do mercado de arte desempenham um papel revelador neste estado de coisas. A prática artística de Andrade se iniciou durante a ditadura, em meados da década de 1970, e apossou-se de um meio sem história, adequado para fixar ações corporais simples e diretas encenadas para a câmera. O vídeo é o meio discreto que, como aponta Fernando Cocchiarale, abriu uma “terceira via” para dois grupos de artistas, sediados no Rio de Janeiro e em São Paulo, que não era “nem nacional nem internacional.” 1 Para Andrade, é um meio que faz parte de uma prática conceitual, alimentada pela poesia e pelo cinema de ficção, e rigorosamente situado no contexto sociológico e político em que opera. Cada “trabalho”, afirma, “apresenta uma ideia”, capturada em uma única tomada sem repetição.2 Diante da propaganda conservadora e colonialista veiculada pela mídia, a artista cria peças mordazes nas quais a imagem serve a um propósito metafórico e universal.
Entre 1974 e 1977, o corpo da artista torna-se assim um campo de batalha simbólico, comprimido em planos fixos que fragmentam uma anatomia restrita. Em Sem título (Fio) (1977) o rosto desfigurado de Andrade transforma-se em um sinal, uma construção gráfica semi-abstrata, bordejando o grotesco. A figura é retalhada para se tornar algo mais, um indefinido. O gesto é muito diferente daqueles desenvolvidos pouco antes por artistas como Françoise Janicot na França (sua série fotográfica Encoconnages iniciada em 1972) ou Annegret Soltau na Alemanha (suas gravuras e fotografias com tela e fio desenvolvidas a partir de 1972, até Thread Performance em 1975), que tomam emprestadas do mundo animal as imagens de uma condição feminina ameaçada de asfixia. Embora Andrade não tivesse conhecimento da arte feminista produzida na Europa e nos Estados Unidos na época, sua primeira série de vídeos denuncia inequivocamente a tomada de reféns, o ataque moral e físico a cada indivíduo de uma população inteira.3 Como Marisa Flórido Cesar bem observa, não se trata de uma questão de Arte Corporal, mas de uma representação simbólica: “É o corpo como imagem, moldado e controlado por religiões e ciências, violado por vários poderes, submetido ao espetáculo e à comercialização”. 4
Andrade gosta de nos lembrar que toda obra é composta por uma intenção, um objeto (seu componente físico) e seu destino. 5 A ambiciosa peça que ela estava desenvolvendo ao mesmo tempo para a 24a Bienal de São Paulo, A Obra / O Espetáculo / O Caminho / Os Habitantes (1975-1977), efetua em sua realização inclusiva uma crítica dos limites ideológicos e sociológicos do sistema artístico contemporâneo. Introduz uma cultura visual anônima – antigos cartões postais – em um protocolo de intercâmbio que solicita a participação de habitantes de vilarejos distantes do cosmopolitismo urbano e obriga a administração da Bienal a se tornar seu receptáculo público. Esta complexa peça de arte postal, que a artista também havia proposto em vão a outras instituições internacionais como a Documenta e a Bienal de Veneza, lança uma luz essencial sobre sua produção de vídeo dos anos 70. Ela leva à conclusão uma concepção da imagem como uma rede de sinais abertos que sempre aponta para os espectadores no sentido de coconstruir um significado, ou seja, convidando ao compromisso sem transmitir uma mensagem.
Para sua exposição retrospectiva de vídeos no Centro Cultural Banco do Brasil no Rio de Janeiro em 2005, Andrade tomou emprestadas as estrofes de um poema, The Undertaking, de John Donne: “It were but madness now to impart / The skill of specular stone” 6. Algo de um enigma pendente é resumido nestas linhas, que abordam a própria capacidade da imagem de capturar uma realidade, de restaurar uma verdade, de falar uma linguagem inteligível para todos. Esta questão, uma expressão de dúvida poética e metodológica, percorre todo o trabalho de Andrade. Ela nos convida a olhar seus vídeos como fragmentos de um pensamento humanista em um momento em que somos confrontados com as múltiplas formas de violência que as imagens permitem e seu alcance se multiplica dez vezes por meio da tecnologia. Do século XX até os dias de hoje, os vídeos de Sonia Andrade continuam a nos desafiar para além de seu contexto histórico e de sua dimensão não menos presente de documento e testemunho.
Marcella Lista, dezembro de 2022
Marcella Lista : (francês/nascido na Itália, nascido em 1970; radicado em Paris) desde 2016, atua como curador-chefe de novas mídias no Centre Georges Pompidou.
Encomendado pelo
1 Entrevista realizada por Marisa Flórido Cesar, Vivian Ostrovsky, Clarisse Rivera e Fernando Cocchiarale com Sonia Andrade, 15 de outubro de 2018.
2 Conversas entre a autora e a artista, Rio de Janeiro, 2005.
3 Durante a apresentação pública de seu trabalho no Centro Pompidou em 2012, Andrade deu a um espectador uma resposta sobre a representação metafórica da tortura política no Brasil em seus vídeos de 1977: “Para estes vídeos, eu não pensei na tortura que era praticada nas prisões no Brasil durante a ditadura – uma tortura que ainda é praticada nas prisões e delegacias de polícia, como sabemos. Eu estava pensando nas várias torturas, de diferentes origens, que os seres humanos sofrem em sua vida diária. São tipos muito diferentes de tortura, não se resume a um.” Entrevista a Marcella Lista, Vidéo et Après, Centre Pompidou, 2 de abril de 2012. https://www.dailymotion.com/video/xrnb3p
4 Marisa Flórido Cesar, “On Servitudes and Freedoms”, Sonia Andrade: Retrospectiva / 1974-1993,Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, 21 de setembro a 27 de novembro de 2011, Organização Editorial André Lenz, Rio de Janeiro, 2011, p. 28.
5 Entrevista realizada por Marisa Flórido Cesar, Vivian Ostrovsky, Clarisse Rivera e Fernando Cocchiarale com Sonia Andrade, em 15 de outubro de 2018.
6 São usadas diversas citações de poemas de John Donne nos títulos das exposições de Andrade do ano de 1999 (Goe and catche a falling starre, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1999), provenientes de uma coleção bilíngüe inglês-francês de seus poemas que Andrade encontrou em uma feira no Rio de Janeiro. São reproduzidas no catálogo Sonia Andrade. Videos, 2005-1974, curadoria Luciano Figueiredo, Centro Cultural Banco de Brasil, Rio de Janeiro, 18 de julho a 18 de setembro de 2005.