O trabalho de Sonia Andrade é ainda hoje amplamente desconhecido. Os limites da infraestrutura institucional no Brasil e as correspondentes demandas que a artista impôs com relação à formulação e ao tratamento de sua obra fora do mercado de arte desempenham um papel revelador neste estado de coisas. A prática artística de Andrade se iniciou durante a ditadura, em meados da década de 1970, e apossou-se de um meio sem história, adequado para fixar ações corporais simples e diretas encenadas para a câmera. O vídeo é o meio discreto que, como aponta Fernando Cocchiarale, abriu uma “terceira via” para dois grupos de artistas, sediados no Rio de Janeiro e em São Paulo, que não era “nem nacional nem internacional.” [1] Para Andrade, é um meio que faz parte de uma prática conceitual, alimentada pela poesia e pelo cinema de ficção, e rigorosamente situado no contexto sociológico e político em que opera. Cada “trabalho”, afirma, “apresenta uma ideia”, capturada em uma única tomada sem repetição.[2] Diante da propaganda conservadora e colonialista veiculada pela mídia, a artista cria peças mordazes nas quais a imagem serve a um propósito metafórico e universal.
Entre 1974 e 1977, o corpo da artista torna-se assim um campo de batalha simbólico, comprimido em planos fixos que fragmentam uma anatomia restrita. Em Sem título (Fio) (1977) o rosto desfigurado de Andrade transforma-se em um sinal, uma construção gráfica semi-abstrata, bordejando o grotesco. A figura é retalhada para se tornar algo mais, um indefinido. O gesto é muito diferente daqueles desenvolvidos pouco antes por artistas como Françoise Janicot na França (sua série fotográfica Encoconnages iniciada em 1972) ou Annegret Soltau na Alemanha (suas gravuras e fotografias com tela e fio desenvolvidas a partir de 1972, até Thread Performance em 1975), que tomam emprestadas do mundo animal as imagens de uma condição feminina ameaçada de asfixia. Embora Andrade não tivesse conhecimento da arte feminista produzida na Europa e nos Estados Unidos na época, sua primeira série de vídeos denuncia inequivocamente a tomada de reféns, o ataque moral e físico a cada indivíduo de uma população inteira.[3] Como Marisa Flórido Cesar bem observa, não se trata de uma questão de Arte Corporal, mas de uma representação simbólica: “É o corpo como imagem, moldado e controlado por religiões e ciências, violado por vários poderes, submetido ao espetáculo e à comercialização”. [4]
Andrade gosta de nos lembrar que toda obra é composta por uma intenção, um objeto (seu componente físico) e seu destino. [5] A ambiciosa peça que ela estava desenvolvendo ao mesmo tempo para a 24ª Bienal de São Paulo, A Obra / O Espetáculo / O Caminho / Os Habitantes (1975-1977), efetua em sua realização inclusiva uma crítica dos limites ideológicos e sociológicos do sistema artístico contemporâneo. Introduz uma cultura visual anônima – antigos cartões postais – em um protocolo de intercâmbio que solicita a participação de habitantes de vilarejos distantes do cosmopolitismo urbano e obriga a administração da Bienal a se tornar seu receptáculo público. Esta complexa peça de arte postal, que a artista também havia proposto em vão a outras instituições internacionais como a Documenta e a Bienal de Veneza, lança uma luz essencial sobre sua produção de vídeo dos anos 70. Ela leva à conclusão uma concepção da imagem como uma rede de sinais abertos que sempre aponta para os espectadores no sentido de coconstruir um significado, ou seja, convidando ao compromisso sem transmitir uma mensagem.
Para sua exposição retrospectiva de vídeos no Centro Cultural Banco do Brasil no Rio de Janeiro em 2005, Andrade tomou emprestadas as estrofes de um poema, The Undertaking, de John Donne: “It were but madness now to impart / The skill of specular stone” [6]. Algo de um enigma pendente é resumido nestas linhas, que abordam a própria capacidade da imagem de capturar uma realidade, de restaurar uma verdade, de falar uma linguagem inteligível para todos. Esta questão, uma expressão de dúvida poética e metodológica, percorre todo o trabalho de Andrade. Ela nos convida a olhar seus vídeos como fragmentos de um pensamento humanista em um momento em que somos confrontados com as múltiplas formas de violência que as imagens permitem e seu alcance se multiplica dez vezes por meio da tecnologia. Do século XX até os dias de hoje, os vídeos de Sonia Andrade continuam a nos desafiar para além de seu contexto histórico e de sua dimensão não menos presente de documento e testemunho.
– Marcella Lista
[1] Entrevista realizada por Marisa Flórido Cesar, Vivian Ostrovsky, Clarisse Rivera e Fernando Cocchiarale com Sonia Andrade, 15 de outubro de 2018.
[2] Conversas entre a autora e a artista, Rio de Janeiro, 2005.
[3] Durante a apresentação pública de seu trabalho no Centro Pompidou em 2012, Andrade deu a um espectador uma resposta sobre a representação metafórica da tortura política no Brasil em seus vídeos de 1977: “Para estes vídeos, eu não pensei na tortura que era praticada nas prisões no Brasil durante a ditadura – uma tortura que ainda é praticada nas prisões e delegacias de polícia, como sabemos. Eu estava pensando nas várias torturas, de diferentes origens, que os seres humanos sofrem em sua vida diária. São tipos muito diferentes de tortura, não se resume a um.” Entrevista a Marcella Lista, Vidéo et Après, Centre Pompidou, 2 de abril de 2012.
[4] Marisa Flórido Cesar, “On Servitudes and Freedoms”, Sonia Andrade: Retrospectiva / 1974-1993,Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, 21 de setembro a 27 de novembro de 2011, Organização Editorial André Lenz, Rio de Janeiro, 2011, p. 28.
[5] Entrevista realizada por Marisa Flórido Cesar, Vivian Ostrovsky, Clarisse Rivera e Fernando Cocchiarale com Sonia Andrade, em 15 de outubro de 2018.
[6] São usadas diversas citações de poemas de John Donne nos títulos das exposições de Andrade do ano de 1999 (Goe and catche a falling starre, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1999), provenientes de uma coleção bilíngüe inglês-francês de seus poemas que Andrade encontrou em uma feira no Rio de Janeiro. São reproduzidas no catálogo Sonia Andrade. Videos, 2005-1974, curadoria Luciano Figueiredo, Centro Cultural Banco de Brasil, Rio de Janeiro, 18 de julho a 18 de setembro de 2005.
(versão original em francês)
L’œuvre de Sonia Andrade reste, aujourd’hui encore, largement méconnue. Les limites des infrastructures institutionnelles au Brésil et l’exigence corollaire que l’artiste a placée dans la formulation et l’adresse de son travail hors du marché de l’art, jouent un rôle révélateur dans cet état des choses. Commencée sous la dictature, la pratique artistique d’Andrade s’empare au milieu des années 1970 d’un médium sans histoire, propre à fixer des actions corporelles simples et directes mises en scène pour la caméra. La vidéo est ce médium discret qui, comme le souligne Fernando Cocchiarale, ouvre alors à deux groupes d’artistes, basés à Rio de Janeiro et à São Paolo, une « troisième voie » qui ne soit « ni native, ni internationale »[1]. Chez Andrade, elle participe d’une pratique conceptuelle, nourrie par la poésie et le cinéma de fiction, et située de manière rigoureuse dans le contexte sociologique et politique où elle opère. Chaque « travail », dit-elle, « présente une idée », captée en une seule prise sans répétition[2]. Face à la propagande conservatrice et colonialiste que livrent les médias d’information, l’artiste élabore des saynètes grinçantes, où l’image sert par métaphore un propos à la fois référencé et universel.
Entre 1974 et 1977, le corps de l’artiste devient ainsi un champ de bataille symbolique, serré dans des plans fixes qui fragmentent une anatomie sous contrainte. Dans Sem título (Fio) (1977) le visage défiguré d’Andrade devient un signe, une construction graphique semi-abstraite, aux limites du grotesque. La figure est entaillée pour devenir autre chose, un indéfini. Le geste est très différent de ceux développés peu de temps auparavant par des artistes telles que Françoise Janicot en France (sa série photographique des Encoconnages commencée en 1972) ou Annegret Soltau en Allemagne (ses gravures et photographies avec toiles et fils développées à partir de 1972, jusqu’à Thread Performance en 1975), qui empruntent au monde animal les images d’une condition féminine menacée d’étouffement. Si Andrade ignore tout, alors, de l’art féministe réalisé en Europe et aux États-Unis, sa première série de vidéos dénonce sans équivoque la prise en otage, l’atteinte morale et physique de chaque individu d’une population entière[3]. Comme l’observe justement Marisa Flórido Cesar, il n’est pas davantage question ici de Body Art mais bien d’une représentation symbolique : « It is the body as image, shaped and controlled by religions and sciences, violated by several powers, submitted to spectacle and commercialization. »[4]
Andrade rappelle volontiers que toute œuvre est constituée d’une intention, d’un objet (son constituant physique) et de sa destination[5]. L’ambitieuse pièce qu’elle élabore au même moment pour la 24e Biennale de São Paolo, A Obra / O Espetáculo / O Caminho / Os Habitantes (1975-1977), met en acte, dans sa réalisation inclusive, une critique effective des limites idéologiques et sociologiques du système de l’art contemporain. Elle introduit une culture visuelle anonyme – des cartes postales anciennes – dans un protocole d’échanges sollicitant la participation d’habitant.e.s de villages distants du cosmopolitisme urbain et obligeant l’administration de la Biennale à s’en faire le réceptacle public. Cette pièce complexe de Mail Art, que l’artiste avait aussi proposée en vain à d’autres institutions internationales telle que la Documenta et la Biennale de Venise, éclaire de manière essentielle sa production vidéo des années 1970. Elle mène à son aboutissement une conception de l’image comme un réseau de signes ouverts qui toujours pointe vers les regardeurs pour co-construire un sens, autrement dit inviter à l’engagement sans adresser un message.
Pour son exposition rétrospective de vidéos au Centro Cultural Banco do Brasil de Rio de Janeiro, en 2005, Andrade empruntait à John Donne les strophes d’un poème, The Undertaking : « It were but madness now to impart / The skill of specular stone »[6]. Quelque chose d’une énigme en suspens se résume dans ces lignes, qui touche à la capacité même de l’image à capter un réel, à restituer une vérité, à parler une langue intelligible à toutes et à tous. Cette interrogation, expression d’un doute à la fois poétique et méthodologique, traverse l’ensemble de l’œuvre d’Andrade. Elle invite à regarder ses vidéos comme les fragments d’une pensée humaniste à l’heure d’affronter les violences multiples que permettent les images et leur portée décuplée par la technologie. Du XXe siècle jusqu’à nos jours, les vidéos de Sonia Andrade continuent d’interpeler par-delà leur contexte historique et leur dimension, non moins présente, de document et de témoignage.
Marcella Lista
[1] Entretien mené par Marisa Flórido Cesar, Vivian Ostrovsky, Clarisse Rivera et Fernando Cocchiarale avec Sonia Andrade, le 15 octobre 2018.
[2] Conversations de l’auteure avec l’artiste, Rio de Janeiro, 2005.
[3] Lors de la présentation publique de son œuvre au Centre Pompidou, en 2012, Andrade répondait de manière nuancée à un spectateur quant à la représentation métaphorique, dans ses vidéos de 1977, de la torture politique au Brésil : « Pour ces vidéos, je n’ai pas pensé à la torture qui était pratiquée dans les prisons, au Brésil, au temps de la dictature – d’ailleurs torture qui continue d’être pratiquée dans les prisons et les postes de police, on le sait. Mais j’avais pensé aux diverses tortures, de différentes origines, dont les êtres humains souffrent dans leur quotidien. Ce sont des sortes très différentes de torture, pas seulement celle-là. » Entretien avec Marcella Lista, « Vidéo et Après », Centre Pompidou, 2 avril 2012.
[4] Marisa Flórido Cesar, « on Servitudes and Freedoms”, Sonia Andrade: Retrospectiva / 1974-1993,Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, 21 de setembro a 27 de novembro de 2011, Organização Editorial André Lenz, Rio de Janeiro, 2011, p. 28.
[5] Entretien mené par Marisa Flórido Cesar, Vivian Ostrovsky, Clarisse Rivera et Fernando Cocchiarale avec Sonia Andrade, le 15 octobre 2018.
[6] Diverses citations de poèmes de John Donne président aux titres d’expositions de Andrade à partir de 1999 (Goe and catche a falling starre, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1999). Elles proviennent d’un recueil de ses poèmes, bilingue anglais-français, qu’Andrade a trouvé au marché aux puces de Rio de Janeiro. Elles sont reproduites dans le catalogue Sonia Andrade. Videos, 2005-1974, curadoria Luciano Figueiredo, Centre Cultural Banco de Brasil, Rio de Janeiro, 18 de julho a 18 de setembro de 2005.