Anna Bella Geiger: passagens e transbordamentos, Marisa Flórido César, 2020
Anna Bella Geiger certa vez definiu seu processo artístico “como um fluxo nas interfronteiras, coreografias diversas se deslocando de um território a outro”.1 Mas poderíamos dizer que, nesse fluxo, emergem inúmeros territórios em embate com as diversas fronteiras que os controlam. Se a artista possui um movimento de explicitar como se desenham esses limites, possui outro em direção ao seu incessante transbordamento: uma obra que vem se deslocando por diversas meios e saberes, contaminando os territórios da arte, ultrapassando e instalando-se em e além de suas fronteiras.
E, de fato, muitos de seus trabalhos tentam desvendar a situação fronteiriça e problemática — o tenso fio da navalha — em que vivemos: de um lado os dispositivos2 (os sistemas de representação, os códigos de controle e inventário como a cartografia e a etnografia, o desenho, a escrita, a imagem, as construções e convenções identitárias, como os mitos nacionais e as questões de gênero); de outro, os desajustes e inadequações incessantes (a impossibilidade de se fundar um sítio originário, de se estabelecer laços estáveis e solidários entre o homem e os espaços que ele habita ou por onde transita, de se definir uma identidade fixa, de se comunicar com o outro além da fronteira). No fio: a imaginação, o fluxo vital como matéria da arte que transborda os limites que aprisionam.
A artista iniciou ainda muito jovem seu percurso artístico, nos anos 1950, na gravura de base abstrata, mas sua inquietação constante a faria transitar e experimentar vários suportes, quase sempre simultaneamente. Na “fase visceral” que se seguiria (1965–68), a representação do corpo fragmentado como um microcosmos anteciparia a cartografia em sua produção; nos anos 1970, experimentaria fotomontagem, fotogravura, xerox, vídeo, e é, doravante, que sua produção adquire um caráter predominante plural, quanto aos meios e aos saberes, aos materiais e às imagens. Com graduação em letras anglo-germânicas e línguas anglo-saxônicas (ambas na Faculdade Nacional de Filosofia, atual UFRJ), com cursos de história da arte em Nova York, a palavra (escrita) está presente em suas obras, em jogos recorrentes entre texto e imagem. A interdisciplinaridade atravessa sua obra, alimentando-a por vários saberes além da história e da teoria da arte, como a geografia (cultural e social, física e humana), estimulada pelo geógrafo Pedro Geiger, a história das religiões e dos mitos, a psicanálise e a filosofia, entre outros.
Dois momentos foram cruciais como ponto de torção à abertura e busca de novos meios em sua produção: Circumambulatio (1972)3 e o convite (ou provocação) de Walter Zanini em 1974 para que Geiger e artistas do Rio de Janeiro participassem, em 1975, da exposição “Video-art” que seria apresentada nos Estados Unidos. Por disponibilidade experimental e com um equipamento Sony Portapak emprestado de Jom Tob Azulay, o grupo pioneiro da videoarte no Brasil foi formado, no Rio de Janeiro, por Anna Bella Geiger, Fernando Cocchiarale, Ivens Machado, Sônia Andrade, Letícia Parente, Paulo Herkenhoff, Ana Vitória Mussi e Miriam Danowski.
O vídeo como entremeios
A videoarte surge no Brasil em meio ao recrudescimento da ditadura militar4 e aos questionamentos dos fundamentos formalistas da arte. No Rio de Janeiro, enfrentaria um circuito artístico precário e uma forte resistência à sua aceitação como arte pela crítica da época. Sem recursos tecnológicos como uma ilha de edição, esse grupo foi capaz, entretanto, de produzir vídeos de alta voltagem poética e crítica que mantêm uma admirável atualidade.5
Como analisa Fernando Cocchiarale, o grupo carioca transitava numa via alternativa àquela inaugurada pela nova objetividade brasileira (1967), que Hélio Oiticica (no texto “Esquema geral da nova objetividade”) situou no entrecruzamento da antropofagia (1928), com o que denominou de vontade construtiva geral — emanada do construtivismo da década de 1950, concreto (Waldemar Cordeiro) e, sobretudo, neoconcreto (Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape) —, e a nova figuração da década de sessenta (Antônio Dias, Carlos Vergara, Rubens Gerchman e Roberto Magalhães, entre outros). Desde o início da década de setenta trabalhávamos numa outra perspectiva. Estávamos começando alguma coisa diversa dos pressupostos da nova objetividade ou do tropicalismo, embora não fôssemos movidos por dissidências em relação a essa genealogia. Pertencíamos a um outro tronco, crítico, mas permeável às tendências internacionais e às novas mídias.6
Nos vídeos de Anna Bella Geiger, da década de 1970, é a artista que protagoniza as ações. São rituais do cotidiano, desprovidos de narrativa dramática, como andar, desenhar, escrever, cartografar. O esvaziamento do gesto expressivo da artista, a incorporação das ações rotineiras e desglamorizadas, seu tempo operacional, repetitivo e autômato, vinham-se opor às concepções formalistas da arte. Nos anos 1970, as fotos e videoperformances de artistas mulheres ampliaram as questões sobre corpo, identidade e gênero. Nos vídeos de Geiger, essas questões estão indissociáveis tanto dos contextos em que se inserem quanto do tensionamento dos códigos de enunciação e visibilidade que os emolduram, expondo sua violência simbólica e sua inconformidade, como a construção da brasilidade, o controle histórico do seu imaginário, seus meios e sistemas de representação, sua iconografia. Um trabalho que interroga a arte e seu lugar na sociedade e a situação da artista (e da mulher) em um mundo cada vez mais codificado e, não obstante, infrato e resvaladiço.
Declaração (1974) remete ao gênero do autorretrato na arte, expondo-o em toda sua ambivalência no contexto da época: em meio à ditadura militar, o que se pode falar? O que falar? O que mostrar? Como devolver àquela figura a voz? Por um lado, a palavra é interditada em tempos de censura e, por outro, nenhuma palavra parece adequar-se suficientemente às imagens. O que se mostra ali como uma fratura íntima é o intervalo entre identidade e representação, a imagem de um espaçamento. Como diz Jean-Paul Fargier (Poeira nos olhos), “o vídeo não é uma forma de ser da realidade, é mil maneiras das imagens estarem em outro lugar […]. No vídeo, a realidade nunca comparece ao encontro, porque não é por ela que esperamos”.7
Ao explorar as passagens e interseções entre as artes, entre imagens e palavras, entre os saberes, as representações e os códigos, Geiger nos instala nessa zona ambígua e hesitante entre as imagens que Raymond Bellour chamou de “entremeio”. É “entre as imagens”, afirma, “que se efetuam, cada vez mais, as passagens, as contaminações de seres e de regimes”.8
Passagens, dois vídeos realizados em 1974, explicitam: só se deriva do sentimento do mundo seus fluxos, seus “entres”. Homem e mundo estabelecem contatos passageiros, tensos, insustentáveis: o que resgatará a unidade perdida? Que rituais de passagem ou sacrifícios nos permitem o acesso aos espaços interditos?
Em Passagens 1, vemos Anna Bella Geiger subindo, descendo, cruzando três escadas: a escadaria de um prédio residencial no Jardim Botânico, a escadaria de uma ladeira no bairro carioca da Glória, a escadaria do Instituto Benjamin Constant, para deficientes visuais, na Urca. Três espaços de transição, três espaços ascensionais de acesso: a um espaço privado (a casa), a um público (a rua), a um institucional (o instituto de educação cujo paradoxo é possuir uma escada para o acesso de deficientes visuais).
Explorar a passagem entre imagens é liberá-las da função representativa compreendida como espelho do mundo. A passagem entre elas é o interstício em que afloram suas metamorfoses e reconfigurações, as falhas do tempo mítico, histórico ou antropológico, as temporalidades inusitadas. O paradoxo do vídeo, diz Bellour, tem sido apanhar a analogia numa tenaz: por um lado ela multiplica sua potência, por outro ela a arruína. O vídeo estende diretamente a analogia do movimento ao tempo: tempo real, instantâneo, que duplica e ultrapassa o tempo do cinema e do qual as câmeras de vigilância oferecem a imagem atroz e pura,9 o que nos força a refletir sobre a analogia do mundo suportada pela imagem, sua potência de semelhança e representação, mas também de desvio e indeterminação.
Em Passagens, as escadas servem a ritos de passagem que não chegam a qualquer destino, são espaços de trânsito e transição sem origem ou finalidade. Esses espaços se sobrepõem ao próprio espaço-suporte da representação que se configura também como passagem. Assim, Geiger caminha nas escadas como se percorresse planos — o plano cartográfico, a superfície do desenho, a página escrita, a tela da televisão que exibe o vídeo —, como que transitando em “um entremeio” em que se confundem as representações do espaço e os meios pelos quais elas são expostas. A um só tempo, o subir e o descer as escadas imprimem, pelo ritmo do caminhar, o tempo do vídeo, como imagem-movimento em sua literalidade; o caminhar nas linhas horizontais sucessivas dos degraus alude ao gesto de escrever nas pautas do caderno ou ao equilíbrio de caminhar nas linhas horizontais de retraço da televisão; o corpo andante da artista postando-se de perfil (“como uma figura egípcia bidimensional”, diz Geiger) desenha os limites do enquadramento da tela e marca um X em seu centro, remetendo ao espaço cartográfico (recorrente em sua obra) e ao espaço pictórico (a definição de um ponto de fuga como promessa do espaço tridimensional da perspectiva).
Mapas elementares
À espacialização complexa à qual os trabalhos de Anna Bella Geiger remetem (em especial por seu interesse pela cartografia) está confrontada a fragmentação violenta que as fronteiras instauram: como o Tratado de Tordesilhas, essa “linha imaginária” — como definiria a artista em um de seus Fronteiriços — partilhou o mundo como se esse fosse uma cera ainda informe. Se as fronteiras são limites abstratos na carne do mundo, são, todavia, forjadas e operadas por conflitos na carne do homem. Se mapas sistematizam em uma superfície bidimensional as informações recolhidas sobre um espaço, se revelam visões de uma época, também possuem uma dimensão temporal: a dimensão das disputas por territórios, da história dos poderes e dos domínios, das reservas e das exclusões. Fronteiras pensam circunscrever, nos fragmentos, identidades, línguas, culturas. Protegê-los das contaminações exteriores. Resguardá-los do outro, desse invasor, desse estrangeiro aos reinos que nos são familiares. Mapas codificam o espaço, nomeiam seu solo, mas não o decifram.
Entre os desenhos do mundo e sua concretude há, sobretudo, um vão e uma inadequação. Horizontes, fronteiras, meridianos tentam — em vão — contorná-lo e designá-lo. Mapas riscam tanto a totalidade quanto a fragmentação e a partilha de seu solo; convenções buscam ancorar fugas e partidas; coordenadas alinham a Terra e seus ciclos à coreografia cósmica. Os desígnios do horizonte buscam controlar a inconstância movediça dos solos. Mas é nesse vão, nessa inadequação, que a imaginação trabalha e a arte inventa mundos além de suas bordas, que encontra sua possibilidade ali onde convenções, horizontes e coordenadas se esgotam.
Se mapas são espaços inventários são também espaços inventados, onde estamos e onde gostaríamos de estar. São a escrita e a encruzilhada das situações e dos desejos: se são arquivos de informações, são também a reserva dos sonhos. Por isso o fascínio que os mapas exercem nos artistas, especialmente em Anna Bella Geiger. Artistas não são apenas viajantes ou navegantes, são corsários. Nas cartografias dos artistas, saqueiam-se as geografias para expor a arbitrariedade e a violência de códigos e fronteiras, mas também para se perder em seus devaneios, para abrir mundos além.
Local de ação, uma série que se inicia na década de 1970, apesar de sua evidente conotação política (eram chamadas de “ação” as operações da guerrilha durante a ditadura), são cartografias, não apenas de uma situação geográfica, mas de acontecimentos, imaginários ou não: as setas apontam e despistam para o local da ação, como sinalizações de localização e de desvio. É quando a palavra entra em seu trabalho, mas tampouco indica, compartilha da ambivalência dos desvios entre a abstração da linguagem e o concreto da percepção. A seta foca o alvo ao mesmo tempo que o redireciona para além das fronteiras, em territórios virtuais e mentais. Nenhuma fronteira é mais evidente: entre as convenções do espaço do mundo e o local que nos é específico, qualquer lugar é sempre um outro lugar. Homem, mundo, e as estruturas que os intermediam portam uma excentricidade irremediável.
Mapas elementares I (1976) e Mapas elementares III (1977) são vídeos em que a ação de mapear está conectada à mão e à intenção da artista, a um exercício conceitual e processual. Em Mapas elementares I, Geiger desenha os contornos de um mapa-múndi ao som da canção de Chico Buarque e Francis Hime, “Meu caro amigo”, cuja letra é uma carta endereçada a um amigo exilado na Europa, falando das banalidades do cotidiano brasileiro em seus clichês de exportação (futebol, samba, em dias de sol ou chuva) e — de modo camuflado para driblar a censura — da situação sombria (“eu quero mesmo te dizer que a coisa aqui tá preta”) que o país vivia numa ditadura em processo de crescente violência e suspensão de direitos. No ritmo da canção, em analogia com a letra da música, Geiger cobre o mapa do Brasil de preto e, de modo sutil, camuflado e simbólico, transforma a abstração do espaço (do retângulo do papel à tela da tevê) em local histórico de acontecimentos nebulosos.
Em Mapas elementares III (1977), um jogo de sonoridades e figuras semelhantes entre palavras e imagens — amuleto (figa), a mulata, a muleta, América Latina (mapa) —, tece inusitadas correspondências entre os imaginários sequestrados e os clichês das representações de um continente atravessado de servidões e promessas mágicas, de violências veladas e estereótipos difundidos e vendidos.
Ao som de Virgen negra (bolero do colombiano Jorge Monsalve, cuja melodia sensual contrasta com o conteúdo sacro sobre a Mãe de Jesus de pele negra), Geiger primeiro desenha uma figa e escreve a palavra “amuleto”. Originalmente italiana, a figa (Mano Fico) era associada à fertilidade e ao erotismo. Em Portugal e no Brasil, e ao ser incorporado pelas religiões de matriz africana, o gesto simbólico (“gesto obsceno” e sexual), de cerrar o punho e colocar o polegar entre o indicador e o médio, teria a função de evitar o mau-olhado e de proteger de seres e forças hostis.10 Amuletos são meios apotropaicos (do grego apotrópaios — que afasta os males) que prometem nos proteger magicamente do caráter sinistro e monstruoso do estranho em nossa proximidade, de sua presença emissária de horrores pressentidos e temidos. O apotropaico nos protege desse efeito maligno, o que significa também proteger-nos da aparição de algo que paradoxalmente não tem contornos ou definição. Um objeto apotropaico se situa no vértice de ver o que não pode ser visto, traçando uma fronteira e um hiato entre a repressão do sinistro e sua aparição sensível.
A mulata, desenhada em seguida com base nos contornos da figa, é o estereótipo da negra mestiça como objeto de exportação turística. Ícone de um Brasil que oculta e preserva o passado colonial e escravocrata no corpo-mercadoria. Se o amuleto nos protege da aparição sensível de algo, a mulata é a imagem que se pode mostrar ao exterior daqueles que não têm direito à imagem e à voz, mas em ambos a conotação sexual. Em muitos de seus trabalhos, Anna Bella aborda as visões estereotipadas que se tem sobre a mulher, o negro e o indígena: seu lugar no imaginário brasileiro, entre a mitificação e a marginalização (estereótipos identitários e culturais são abordados em várias obras, como na série sobre o Brasil nativo, Brasil alienígena11). O Brasil para exportação oculta o aniquilamento das muitas etnias e povos ao longo dos tempos, sua imagem-corpo-mercadoria oculta sua invisibilidade e silenciamento, preservando sua violência.
A fluidez entre as analogias semânticas e visuais vai se mostrando cada vez mais complexa e permeada de muitas camadas de sentido no jogo que se segue entre palavras e imagens. Figa e mulata se convertem em muleta e mapa desta América Latina claudicante: pobres próteses visuais que substituem aquilo que é da ordem do aviltamento. Por isso o jogo de ocultamento e a exposição daquilo que deve ser mostrado e daquilo que deve ser apagado de sua história e de seu povo atravessam o vídeo.
Portanto, ainda que Anna Bella Geiger busque mapear solos e territórios, a artista também frui o deslocamento, a experimentação artística sem chão fixo, entre as fronteiras. Ainda que frustre uma identidade precisa, o outro da fronteira lhe dará, no olhar alheio, os desenhos fluidos de si. Ainda que lhe falte a voz, o susto lhe promete um recomeço. Ainda que não haja local definido para a ação, a diáspora lhe concede um “entre”, esse impulso em direção ao além da fronteira — esse trânsito que se dispersa também faz integrar o estranho.
Marisa Flórido César
1 Anna Bella Geiger em entrevista a Marisa Flórido César, concedida em outubro de 2001, em seu ateliê-casa no Rio de Janeiro.
2 “Dispositivo” é um termo do pensamento de Michel Foucault, que compreende um conjunto heterogêneo de discursos e saberes, de instituições e arquiteturas, leis e aparatos de segurança, etc., mas é, sobretudo, a rede que se estabelece entre eles como estratégias e jogos de poder. É um campo de forças, uma rede de controle e de relações, que investe sobre o corpo e a vida. Giorgio Agamben amplia essa concepção dividindo em dois grupos os seres viventes e os dispositivos que os capturam: chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o panóptico, as escolas, as confissões, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc., cuja conexão com o poder é em um certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, […] os computadores, os telefones celulares e — por que não — a linguagem mesma, que é talvez o mais antigo dos dispositivos, em que há milhares e milhares de anos um primata — provavelmente sem dar-se conta das consequências que se seguiriam — teve a inconsciência de se deixar capturar. AGAMBEN, Giorgio. O amigo & o que é um dispositivo? Tradução de Vinicius Nicastro Honesko, São Paulo: Argos, 2014. p.40.
3 Circumambulatio: circular em torno de um centro, como se, imitando o movimento do cosmos, assegurasse assim sua harmonia. Poucos ritos como Circumambulatio foram tão universalmente difundidos. Os hebreus o praticavam em torno de um altar, os árabes em redor da Ka’ba de Meca, os hindus o exerciam repetindo o movimento aparente do Sol, visto do hemisfério boreal. Circumambulatio foi intitulada uma série de ações ocorridas pela costa e em alguns terrenos vazios da cidade do Rio de Janeiro, no início da década de setenta (1972), realizada por Anna Bella Geiger e seus alunos no curso do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Sua proposta consistia em marcar encontros sigilosos com os alunos em determinados locais da cidade para que eles ali interviessem, trabalhando alguns arquétipos do espaço mítico como o labirinto e a torre, alimentada pelas teorias de Mircea Eliade e Carl Gustave Jung. As ações eram então fotografadas. Em tempos de ditadura militar e de forte censura, por isso as ações eram simultaneamente camufladas e explícitas, era uma resposta à coordenação do museu que impusera uma série de restrições. Entre os vagares pela costa, talvez se encontrasse um território ideal onde ainda fosse possível trabalhar, reunir-se, falar: o centro sagrado que o labirinto guarda, o Verbo que a torre (como Babel) quer alcançar.
4 Regime instaurado em 1º de abril de 1964 e que durou até 15 de março de 1985, sob comando de sucessivos governos militares. De caráter autoritário e nacionalista, teve início com o golpe militar que derrubou o governo de João Goulart, o então presidente democraticamente eleito.
5 As primeiras experiências foram feitas, em 1974, por Anna Bella Geiger, Sônia Andrade, Ivens Machado e Fernando Cocchiarale e alguns meses mais tarde, já em 1975, por Letícia Parente, Paulo Herkenhoff e Miriam Danowski. O que provocou o interesse desse grupo pela videoarte foi o convite e a provocação de Walter Zanini a alguns artistas de São Paulo e a Anna Bella Geiger (para que ela chamasse alguns artistas do Rio) para participarem da exposição “Video-art” que ocorreria em 1975 nos Estados Unidos. Os artistas de São Paulo não conseguiram o equipamento, mas os do Rio emprestaram de Jom Tob Azulay, que obtivera um equipamento Sony Portapak. O grupo realizou cerca de 40 vídeos, alguns filmados pelo próprio Jom Tob Azulay. A exposição “Video-art” foi apresentada em quatro instituições norte-americanas: Institute of Contemporary Art/University of Pennsylvania, Philadelphia; The Contemporary Arts Center/Cincinnati, Ohio; Museum of Contemporary Art/Chicago, Illinois; Wadsworth Atheneum/Hartford, Connecticut. Cinco brasileiros participaram dessa exposição: quatro do núcleo pioneiro carioca (Anna Bella Geiger, Ivens Machado, Sônia Andrade, Fernando Cocchiarale) e Antônio Dias, que realizou um vídeo em Milão, onde residia.
6 COCCHIARALE, Fernando. Depoimento sobre o começo da videoarte no Brasil. In: Ivens Machado. Encontro/Desencontro. Rio de Janeiro: Contra Capa; Oi Futuro, 2008, p.76.
7 FARGIER, Jean-Paul. Poeira nos olhos. In: PARENTE, André (org.) Imagem máquina. Rio de Janeiro: 34, 1993, p.231.
8 BELLOUR, Raymond. A dupla hélice. In: PARENTE, André (org.) Imagem máquina. Op. cit., p.215-216.
9 Idem, ibidem, p.223.
10 A crença na eficácia protetora do gesto pode ser devida à convicção de que os demônios, por serem criaturas espirituais assexuadas, temiam alusões sexuais de qualquer tipo (o que pode também explicar a presença de imagens de órgãos sexuais, ao lado de pentagramas e símbolos cristãos em grafitos alpinos).
11 Em Brasil nativo/Brasil alienígena, Anna Bella Geiger se apropria de uma série de nove cartões-postais com cenas da vida indígena, estereótipos reforçados tanto pela indústria cultural como pela ditadura civil-militar que então governava o país, que camuflam o extermínio desses povos que se perpetua ainda hoje. Ao lado de cada cartão-postal, Geiger coloca fotografias em que a artista aparece imitando de modo um tanto desajeitado os gestos de homens e mulheres indígenas. O que é ser artista branca descendente de judeus europeus num lugar chamado Brasil? Para quem o Brasil é Brasil? Qual é o Brasil nativo, qual é o Brasil alienígena? O que significa ser brasileira ou brasileiro? O que é identidade?