Leve, dispersiva, ubíqua: a não escultura de Iole de Freitas por Sônia Salzstein, 2020

Leve, dispersiva, ubíqua: a não escultura de Iole de Freitas por Sônia Salzstein, 2020

O termo escultura se aplicaria com dificuldade à maior parte dos trabalhos que Iole de Freitas realizou ao longo de sua carreira, iniciada no princípio da década de 1970, depois de uma experiência marcante na dança, que ela havia praticado dos 6 aos 25 anos, e como designer, de meados dos anos 1960 ao início da década seguinte. Dados biográficos que, como se vê, colocam o corpo, o movimento e a forma (ou os limites da forma, que ela sempre tratou de estirar) no centro das preocupações da artista, de imediato sugerindo uma afinidade com a escultura — mas também sinalizando o seu interesse em pensar esses três eixos de seu trabalho para muito além da escultura. De todo modo, embora a produção preservasse o vínculo originário com a escultura, isto é, com a linguagem primordialmente corporal que esta afirma, ela acabou por ramificar numa multiplicidade de propostas espaciais — fotografias, performances, filmes, relevos, instalações —, que não cessaram de tensionar as premissas clássicas, construtivas, da tradição da escultura.

Seja como for, nos filmes super-8 que Iole realizou entre 1972 e 1973 já se anunciava uma poética do corpo, que irrigaria todas as intervenções espaciais que a artista realizaria em sua carreira. Nesses filmes, é notável como a percepção do próprio corpo surge invariavelmente fundida ao ambiente no qual ele se desloca — ou que o desloca. São trabalhos que ignoram a profundidade de campo, porquanto tudo se dá mediante acontecimentos em superfície, uma sucessão de membranas que se discernem envoltas num halo de luz, que deslizam umas por entre as outras, num feixe de relações intrinsecamente físicas e sensoriais, a dissolverem limites e hierarquias espaciais. Tão plena é nesses filmes a percepção espaçotemporal do corpo que não se saberia o que estaria “dentro” ou “fora” dele. O ar e a luz — ou o corpo feito em partículas, sinestesicamente impregnando todo o ambiente — parecem ser tudo de que o mundo é feito.

A lida metódica da artista com a escultura, propriamente, viria à tona no princípio da década de 1980, e seria marcada pela consideração implacável e percuciente das categorias e do repertório da tradição escultórica, como se sabe, cultivada no legado do classicismo, na qualidade monumental de suas “formas viris”, uma tradição cujas alegorias clássicas de totalização e domínio espacial estão historicamente sumarizadas

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na higidez cívica do templo, do palácio e do monumento. Diferentemente, um modo de operar como se fosse pelas bordas — como se a artista quisesse envolver tudo o que a escultura “deixava de fora”, liberando vãos e vazios — vingou na obra, logo nesse período inicial.

Não significa dizer que Iole descartara a potência construtiva que era também parte da tradição clássica. Pelo contrário: nos anos subsequentes, seu trabalho revolveria o legado construtivo das vanguardas modernas, esvaziando-o de seus aspectos programáticos e prescritivos. Além disso, tal como alguns dos artistas neoconcretos haviam feito menos de duas décadas antes, ela reintroduzira o problema do corpo no cerne do processo construtivo, o que naturalmente agregava um foco permanente de instabilidade e de indeterminação formal a seu trabalho. Emergia uma produção em escultura —– ou confrontada ao campo da escultura — afinada com as correntes anticlássicas da arte contemporânea, mas que não abdicara da inteligência estrutural da tradição construtiva, e para a qual forças construtivas e desconstrutivas da forma teriam de ser igualmente consideradas e sopesadas.

Via-se, ademais, com clareza, nesse momento de consolidação da prática artística de Iole, como a obra revelava consonância com experiências que vinham sendo testadas por mulheres artistas mundo afora, em tempos relativamente recentes: do pós- minimalismo de Eva Hesse, da exploração da dança e da plasticidade do corpo em Yvonne Reiner, passando pelas experiências de reerotização do corpo em Lygia Clark, de meados dos anos 1960 em diante, e dessas à produção italiana da povera e da body art, movimento no qual Iole ademais havia tomado parte, tendo atuado na Itália nos anos vitais de seu surgimento. Desde então, a obra amadureceu uma linguagem própria aos fenômenos em superfície, tensionada por um rico vocabulário de expressões corporais consubstanciadas no gesto. Do gesto, consolidaria uma fina economia, do mais veloz e assertivo ao mais lasso e refreado, um reservatório de tensões e possibilidades, a imprimir velocidade e uma extraordinária potência energética ao trabalho, que mesmo na grande escala jamais perderia sua homologia com o corpo.

Ao mesmo tempo, entre os anos 1980 e 1990 firmava-se um repertório de materiais e processos construtivos assentados na delicadeza de superfícies, mas também na violência de sua iminente desagregação: membranas translúcidas e planos retesados respondiam conforme sua maior ou menor ductilidade a dobras, torções, fendas e suturas. O tempo radicalizou essas intervenções para além do alcance do gesto, e no início do

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segundo milênio deu-se um significativo reajuste de escala, que passava a solicitar do trabalho um raciocínio estrutural (o qual, todavia nunca lhe silenciou a potência física, corporal, a referência primeira ao gesto, às disposições e afetos do corpo). A artista doravante pensava suas intervenções em tensão com a arquitetura, ao mesmo tempo que, ao radicalizar uma poética de superfícies, estirava a um novo patamar os limites entre interior e exterior, entre “dentro” e “fora”.

Estruturas lineares leves e vazadas, quase sempre aéreas, com um mínimo de pontos de apoio estratégicos, nas paredes ou no teto; de dentro pareciam querer estufar ou esgarçar os espaços construídos – eram espécies de organismos a pressionar a arquitetura com seus volteios, alteamentos, distensões, refreamentos… Iole pacientemente desconstruía o paradigma clássico da verticalidade, a premissa perceptual das coordenadas espaciais, o privilégio de um centro de gravidade do espaço, do qual a arquitetura e a escultura historicamente haviam sido o repositório, por excelência. Dos arranjos espaciais que se disseminam com graciosidade e velocidade cortante no espaço, buscando vencer a gravidade, ainda ressalta a titânica energia corporal, numa bem distribuída economia do gesto, ainda que os trabalhos das últimas duas décadas não tragam mais a intervenção direta da mão da artista.

Tal aproximação pelas bordas, que recusa a positividade dos objetos; a predileção de Iole pelos espaços intersticiais, “atmosféricos”, evidentemente dialogam com o precedente notável da experimentação dos já citados artistas do neoconcretismo, como Hélio Oiticica e Lygia Clark, que haviam radicalizado a vanguarda construtiva europeia, conduzindo-a a desfechos inesperados, ancorados numa fenomenologia do corpo. Mas Iole, que já não podia contar com a dimensão intimista, idílica ou regeneradora em que os neoconcretos haviam percebido o corpo, propunha tal fenomenologia do corpo no espaço densamente travejado da vida contemporânea, num embate com o sistema da cultura que ao neoconcretismo, a seu tempo, não foi dado viver. À luz de uma trajetória vigorosa de meio século, posicionando-se, por assim dizer, nas bordas da tradição construtiva, flanqueada pelas pressões de uma lógica espacial cada vez mais insidiosa e prescritiva como é a que regula a vida nas grandes metrópoles contemporâneas, a obra de Iole de Freitas alcançou uma sutileza e potências construtivas secretas, escondidas em seus pequenos gestos estratégicos.

Sônia Salzstein dezembro 2020

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