Regina Silveira por Claudia Saldanha, 2024

O surgimento da fotografia no século XIX e a evolução das subsequentes tecnologias que amparam o registro fotossensível da imagem mudaram nossa forma de fazer e perceber a arte. Essas técnicas, como bem percebeu Walter Benjamin, permitiram a incorporação tanto do tempo quanto do espaço às obras posteriores, seja pela cristalização do instante ou pelo registro do movimento. Com os novos meios de produção e reprodução das imagens, as habilidades manuais e artesanais perderam a sua proeminência.

Em 1968, o artista sul-coreano Nam June Paik utilizou pela primeira vez um equipamento de vídeo portátil para gerar imagens colhidas do interior de um táxi, permitindo aos artistas o uso de aparelhos de captação visual menos profissionais e específicos. A maior parte dos trabalhos produzidos pela primeira geração de videoartistas inseriu-se no registro do gesto performático – o confronto da câmera com o corpo. Como sugere a crítica norte-americana Rosalind Krauss, “o corpo do artista passa a ser colocado entre duas máquinas – a câmera e o monitor – de modo a produzir uma imagem instantânea, como a de um Narciso mirando-se no espelho”.1

Com a intensa produção de filmes de artista na década de 1960, e com as experiências com o meio do vídeo, abriu-se um novo campo de ação. Regina Silveira, Anna Bella Geiger, Ivens Machado, Letícia Parente e outros experimentaram o novo suporte magnético com equipamentos trazidos dos Estados Unidos por Jom Tob Azulay e Walter Zanini, então diretor do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo.

Em relevante depoimento, Fernando Cocchiarale revela que alguns vídeos de Sonia Andrade e Anna Bella Geiger, bem como Versus, de Ivens Machado, que fizeram parte da primeira mostra de videoarte organizada pelo Museu de Arte Contemporânea da Filadélfia, em 1975, levaram apenas três dias para ser concebidos. “A videoarte não nos seduzia por sua emergência internacional ou pela tentação tecnológica. Se não sabíamos operar seus dispositivos, sabíamos perfeitamente como explorá-los de modo crítico e ampliar o campo de nossas experimentações poéticas”.2

A seguir, com o advento de nova tecnologia de captação e edição de imagem, foi possível ganhar imensa flexibilidade em relação aos custos e ao tempo antes empregados na edição e na sonorização. Os artistas passaram a ter melhores condições de trabalho, não precisando mais registrar performances em tempo real, em um único plano e com uma câmera fixa. A decorrente sintonia entre imagens e movimento ampliou o campo de ação e a linguagem da arte contemporânea brasileira.

As experiências do cinema com o super-8 e o 16mm foram incorporadas ao processo de investigação e descoberta, como bem analisa Arlindo Machado: O mínimo coincidia em ser também o máximo. Uma vez que a potência do trabalho não podia residir na sofisticação dos recursos expressivos ou tecnológicos, todo esforço criativo era voltado para a performance do corpo que se oferecia à câmera. A chegada de novos equipamentos de vídeo significou não apenas uma autonomia em relação aos meios de produção e reprodução da imagem, mas, acima de tudo, um exercício de liberdade de linguagem e de expressão.3

Na visão de Regina Silveira, ser artista multimídia na cena da arte brasileira nos anos 1970 propiciou uma distância em relação aos meios tradicionais e enfatizou os processos. Em seu texto “Meios e ideias” (2010), a artista sugere que o imaginário dessa produção, nacional e internacional, devorou o mundo da mídia impressa, apropriou-se de imagens de todo tipo, competiu com a comunicação e se abriu às maiores hibridizações com outras áreas do conhecimento… Sobre a mesa estava o binômio arte/vida e o questionamento dos limites da arte… Ao assumir o discurso crítico, o artista buscava encarnar em si todo o circuito.

Tendo iniciado sua carreira de pintora em Porto Alegre, Regina Silveira considera que o fato de ter feito um curso com Iberê Camargo a impulsionou na direção de um percurso de transformação marcado pela oscilação entre figuração e abstração. Nessa mesma época, aprendeu xilogravura com Francisco Stockinger e litografia com Marcello Grassmann. A gravura permaneceu como linguagem maior, de fundo, agora rebatida para vários suportes.

Mais tarde, por meio de uma bolsa de estudos, fez uma disciplina de História da Arte na Faculdade de Filosofia e Letras de Madrid, parcialmente ministrada no Museu do Prado, em Madrid. A temporada europeia, estendida depois do curso, trouxe a Regina Silveira a possibilidade de conhecer artistas de matriz construtiva, alguns operando nas primeiras manifestações da arte com computador, em contrapartida a outros mais próximos às manifestações do grupo Fluxus. É nesse período em que se afasta da representação e dá início a uma série de trabalhos geométricos, em papel ou construídos em material industrial, nos quais a cor e a forma sobressaem, realizados em parte no Brasil e parte já em Porto Rico, para onde viajou com o artista espanhol Julio Plaza, ambos convidados a lecionar no campus de Mayaguez da Universidade de Porto Rico, onde permaneceram por quatro anos. São dos primeiros momentos em Porto Rico os álbuns de Labirintos, com seus espaços organizados em perspectiva, em uma nova ordem conduzida pela ilusão, e também suas primeiras experiências com imagens fotográficas apropriadas.

Em idas frequentes a Nova York, teve contato com artistas conceituais que ali trabalhavam e viviam e, ainda nesses primeiros anos dos 1970, com alguns deles e diversos outros artistas de diferentes latitudes, participou, no próprio campus de Mayaguez, de uma exposição de arte postal (mail art) que foi, sem dúvida, pioneira na rede de trocas de obras de pequeno formato.

Após 1973, Regina Silveira estabeleceu-se em São Paulo, onde lecionou na Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) e na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP). Em seus cursos, mesclava os meios gráficos industriais com os meios tradicionais da gravura, rompendo com paradigmas e incorporando a fotografia e a fotomecânica em suas obras.

Em seus primeiros vídeos – Objetoculto (1976), Campo e artifício (1977), Videologia (1978), A arte de desenhar (1980) e Morfas (1981) –, o gesto conduz a cena em ações de curta duração. Feitos em condições precárias e vulneráveis, como quase todos os vídeos realizados naquele período, registram um acontecimento efêmero. Em Objetoculto, veem-se fragmentos de uma narrativa incompreensível através de uma fresta produzida em um aparelho de TV. Em Campo, a mão da artista explora uma área onde a ação deve ocorrer. Em Artifício, uma camada de fita adesiva recortada em tiras e recoberta com

letras adesivas é retirada até que a palavra e o conceito desapareçam. Em Videologia, uma arma surge após um gesto de limpeza e entintagem de uma matriz de offset. Em A arte de desenhar, mãos executam gestos “mal-educados” que remontam a uma aula de desenho acadêmico. Em Morfas, uma câmera muito próxima captura detalhes de objetos do cotidiano em uma sequência de perspectivas enigmáticas, conferindo à cena uma alta voltagem expressiva.

A partir de 1988, Regina Silveira dá início a seus trabalhos instalativos (site specific) elaborados como padrões ou sombras gráficas que eram projetados ou enxertados em diferentes arquiteturas e ambientes.

Nos anos 2000, a artista volta a fazer vídeos integrando-os a obras como Lunar, de 2003, sua primeira videoinstalação, e Mil e um dias (2007/2011). Surge nessa época também seu interesse pelo espaço urbano, que se expressa através da utilização de animações projetadas nas paredes das cidades, através das quais desloca a ação para grandes empenas e fachadas, com projeções dinâmicas e noturnas. Com essas características, realizou Super herói (Night and day), em 1997, Transit, de 2001, Surveillance e Cartoon, em 2015.

Segundo Regina Silveira, os últimos vídeos dessa fase deram origem a subsequentes parcerias técnicas que se incorporaram ao seu percurso, que faz um uso particular de meios tecnológicos, desenvolvidos por uma “artista não especialista, em meio algum, pronta, entretanto, a lançar mão de qualquer knowhow e procedimento que sirvam aos seus projetos”.4

É Arlindo Machado, mais uma vez, quem vem lembrar que a emergência do vídeo alterou radicalmente o destino das imagens técnicas produzidas ao longo das décadas seguintes. O vídeo transformou-se na mais radical dessas imagens, passando a produzir uma iconografia definitivamente contemporânea. “A experiência radical da fragmentação e do hibridismo foi a resposta às tentativas de totalização histórica e de síntese de gerações anteriores obcecadas pelo projeto utópico de construção de uma identidade nacional e de um projeto de país”.5

A obra de Regina Silveira reflete a busca por esse hibridismo, utilizando-se de meios não tradicionais para a produção de arte. Dessa forma, desvela uma fascinante pesquisa cuja aparente simplicidade recobre um multifacetado repertório de referências históricas. Com recursos advindos de tecnologias sofisticadas, e transitando por diversas linguagens e procedimentos – do desenho ao vídeo, da gravura às instalações, dos objetos às projeções de luz e sombra –, a obra de Regina Silveira nos convida a uma profunda reflexão sobre a arte e o pensar gráfico.

1 KRAUSS, Rosalind. The originality of the avant garde and other modernist miths. Cambridge: The MIT Press, 1986.
2 SECRETARIA DE ESTADO DE CULTURA DO RIO DE JANEIRO. Portfolio – Revista da Escola de Artes Visuais do Parque Lage.
3 MACHADO, Arlindo. A arte do vídeo. São Paulo: Brasiliense, 1988.
4 NAVAS, Adolfo Montejo. Regina Silveira. Milão: Charta Books, 2010. 5 MACHADO, Arlindo. A arte do vídeo. São Paulo: Brasiliense, 1988.

Claudia Saldanha

Claudia Saldanha é graduada em Artes pela PUC, Rio de Janeiro e Mestra em Artes Visuais pelo Pratt Institute, Nova York. Desde 1998 é Professora Assistente de História da Arte da UERJ. Desde 2014 é Diretora do Paço Imperial, no Rio. De outubro de 2008 a agosto de 2014 foi Diretora da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio. Em 2008 foi Coordenadora da Superintendência de Artes da Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro, órgão responsável pela coordenação e programação de escolas de artes, museus, centros de arte e teatros do Estado do Rio. De 2003 a 2005 dirigiu a Divisão de Teoria e Pesquisa do Museu de Arte Contemporânea de Niterói (MAC). De 1993 a 2005 dirigiu a Divisão de Artes Visuais do Instituto Municipal de Arte e Cultura – RioArte. Neste período foi curadora das Galerias Sergio Porto e da Série Rioarte Vídeo / Arte Contemporânea.

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