Regina Vater Por Patrícia Mourão de Andrade, 2024
Pouco tempo antes de deixar o Brasil pela primeira vez, Regina Vater organizou um happening em uma praça do Rio de Janeiro. O título, Nós [1973], aludia tanto à figura do nó, da amarração, quanto à coletividade representada pela primeira pessoa do plural que se formava ali, precária e efemeramente, em torno de (ou rodeada por) cordas disponibilizadas pela artista para a manipulação dos participantes. No jogo lúdico com as cordas, atando e desatando nós, surgiam laços para uma comunidade temporária. A artista não tinha como saber que ali estava inscrito seu destino depois que se tornasse estrangeira: a busca por laços.
Em 1970, Vater tem sua primeira temporada fora do Brasil, primeiro em Paris, depois em Nova York, cidade onde vive de forma intermitente até o final da década, quando então se instala de modo definitivo nos Estados Unidos. A descoberta de si como estrangeira, deslocada, desterrada – uma Alice em um país que ela não tem tanta certeza se das maravilhas –, é concomitante com seu encontro com as mídias audiovisuais. Nas décadas seguintes, técnica e terra – natal, estrangeira e, depois, o planeta – andarão lado a lado em sua produção.
Em terra estrangeira, com a câmera (primeiro fotográfica), ela tenta se aproximar daquilo que não entende. Como quem busca pistas, caminhos, formas de orientação – talvez raízes? –, ela primeiro olha para o chão, para os lugares por onde andaram pessoas, para os rastros de sua passagem. Em Nova York, no lugar de raízes, brotos, verdes, farelos de pão, ela encontra os detritos da sociedade de consumo, o lixo. Dessas imagens, nasce seu primeiro audiovisual – como ficaram conhecidos, no Brasil, os experimentos com projeção de slide e som –, Luxo-lixo [1973-1974], no qual ela contrapõe imagens do lixo com a opulência das vitrines de lojas elegantes.
Depois, em um movimento talvez natural para aqueles que se veem lançados em um mundo estranho, a artista volta a câmera para si mesma, como que tentando reconhecer essa estranha na qual parece ter se tornado em terra estrangeira. A identidade, não raras vezes, sustenta-se na identificação com um lugar de pertencimento; abalada essa relação, desestabiliza-se o sentido da identidade. Em Conselhos de uma lagarta [1976], feito em super-8, é o rosto da artista, filmado ao longo de meses, com expressões, penteados, humores diferentes, o que vemos. Como a Alice de Lewis Carroll em seu encontro com a lagarta, Vater não reconhece o lugar em que está nem a si mesma nesse lugar. Tudo é estranho, instável: a memória não é mais confiável, as palavras que traz de casa se perdem, o corpo, mutante: “Não consigo lembrar das coisas como antes – e não mantenho o mesmo tamanho nem por dez minutos! […] Tudo o que eu sei é: é muito estranho para mim” – diz Alice-Vater.
Conselhos também foi a primeira experiência com uma instalação da artista: o filme era exibido de frente para um outro, com planos fechados de olhos que pareciam encará-la, em todas as suas versões, como talvez a lagarta tenha, perplexa, encarado Alice.
Em 1980, Vater se instala definitivamente nos Estados Unidos, e o que começou como uma tentativa de entender uma terra estrangeira, depois de se entender como estrangeira, se volta então para a casa, o país natal. Inicialmente, são cantos de amor e saudade para um país perdido e de certo modo romantizado: o país do “humor e do amor”, “abençoado por Deus”, onde há a “melhor cidade da América Latina”, como se ouve em filmes-diários belos e breves como The end [1981-1982] e Saudades do Brasil [1984].
Em um mundo de homens (como canta James Brown), toda mulher é um pouco estrangeira, aqui, lá, em qualquer lugar. Então, quando, em meados da década de 1980, Vater, casada, se muda para o Texas, o sentimento de estrangeirismo da brasileira encontra o da mulher. A “terra”, o lugar de pertencimento, segurança ou estranhamento, que em outros filmes fora Nova York ou o Brasil, torna-se a casa no sentido literal, a moradia: lugar de dinâmicas e performances de gênero. Em uma série de vídeos, ela comenta esse espaço, entre solitário e extenuante, que a mulher deve ocupar para que o amor prevaleça.
Há uma solidão muito particular no trabalho de Vater, solidão de uma artista que amadurece em trânsito, fazendo e desfazendo laços, encontrando e perdendo pares, solidão de alguém que nunca integrou movimentos, e parece correr pelas margens, sem jamais se fixar em linguagens, técnicas, mídias. Ela está sempre, como muito bem descreveu Augusto de Campos, “salutarmente fora de lugar”. Com o tempo e o amadurecimento da artista e da mulher, aquela solidão, antes fruto de deslocamentos e mudanças, torna-se uma forma de liberdade, liberdade essa que a leva ao encontro de um outro sentido de pertencimento ou comunhão, agora com uma outra terra, no caso, o planeta, onde todos habitamos sem necessidade de visto de residência.
O sentimento de autoestranhamento e deslocamento, marca dos primeiros quinze ou vinte anos da produção fílmica de Regina Vater, começa a ser dissolvido à medida que a terra deixa de ser uma nação, geografia inscrita no tempo histórico e definidora de um sentido de identidade e pertencimento, para ser a fonte mesma da vida, inscrita, digamos, em um tempo geológico ou mítico. É a terra mãe, o planeta terra, a natureza, que a humanidade e as nações nas quais sustentamos nossa identidade usurparam e exploraram. Dos anos 1980 em diante, quase todos os seus vídeos (ela para de trabalhar com super-8) serão marcados por um senso de reverência, perplexidade, responsabilidade ou preocupação com o mundo animal, natural e o destino do planeta – um movimento que a inscreve em uma rica, e cada vez mais celebrada, tradição de ecofeministas. A solidão de outrora converte-se em uma forma de comunhão com o cosmos e a natureza.
Curiosamente, esses serão seus trabalhos com mais manipulação de imagem, ou onde a textura da imagem do vídeo será mais explorada. Até aquele momento, a câmera era, para Vater, um “instrumento-media para uma investigação”, expressão que tomo de empréstimo de Hélio Oiticica em comentário sobre o trabalho da amiga. Ela servia a um processo, a uma busca, mas não era um instrumento a ser investigado. Nos vídeos voltados para o mundo natural, ela olha para a natureza tanto quanto para a natureza das imagens técnicas que circulam sobre a natureza.
1 CAMPOS, Augusto de. Texto de apresentação. In: Voices and visions [panfleto de exposição]. Austin: Mexic-Arte Museum, 1997. Disponível em: https://texashistory.unt.edu/ark:/67531/metapth1330716/m1/10/. Acesso em: 17 de novembro de 2024.
2 OITICICA, Hélio. Texto para Regina Vater, 18 de julho de 1978 (folha datilografada). Programa Hélio Oiticica, documento nº 1.806/78.
Patrícia Mourão de Andrade
Patrícia Mourão de Andrade (Belo Horizonte, Brasil, 1980) é pesquisadora, curadora e escritora radicada em São Paulo. Sua pesquisa se concentra em filmes de artistas, narrativas e contra narrativas ou história da arte por artistas. Ela organizou séries temáticas e retrospectivas de diretores em diferentes locais e festivais no Brasil e na Europa, e editou livros sobre artistas como David Perlov, Jonas Mekas, Pedro Costa e Straub-Huillet.
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